Neste artigo pretendo problematizar a forma como o “mundo gay” vivencia sua sexualidade atualmente em comparação com o modo de vida dos homossexuais (termo usado na época) das décadas de 60, 70 e 80. O desafio consiste em evidenciar essas diferenciações, traçar um paralelo entre homossexualidade e estigma social, levantando a questão da (sobre)vivência na margem¹ da sociedade.
Conversando com gays que viveram intensamente as décadas de 60, 70, 80 em Porto Alegre, um discurso recorrente nestes personagens é de que naquela época era muito mais prazeroso viver a homossexualidade. Dizem que era fácil e até romântico conhecer garotos que circulavam por locais “específicos”, onde o centro da cidade era território do todos, inclusive o Cais da Mauá com seus estivadores, e sem aquele muro horrendo era local de encontros e flertes. Não havia motéis que aceitavam dois homens e eram poucas as opções para encontros íntimos, mas as festas aconteciam sempre na casa de alguma amiga. Umas mais atinadas e com acues(dinheiro) tinham AP no centro para este fim, ou seja, fazer festas e orgias. A clandestinidade exigia que estes sujeitos tivessem seus alvos bem mais delimitados e certeiros dentro da arquitetura social da cidade e usando os códigos de caça da época.
Sabemos também que naquelas décadas o preconceito era muito maior e a exclusão também, e aí poderíamos pensar que ante esta afirmação, teríamos uma contradição em relação às declarações das bichas que falam com saudade e até nostalgia daquela época. Pois é, isto nos remete a pensar de como aqueles homossexuais puderam, mesmo numa maior clandestinidade e margem, encontrar arranjos e desfrutar desta situação. Na realidade a clandestinidade fazia com que a sociedade invisibilizasse estes sujeitos, o que os tornavam anônimos nos espaços públicos. Somente eles e seus pares sabiam o que estava acontecendo e é neste cenário que as histórias aconteciam.
A necessidade de busca de realização de nossos desejos e impulsos sexuais fazem com que tenhamos múltiplas estratégias de sobrevivência. Isto é atemporal, está em todos os momentos históricos. Buscar esta realização e negociá-la com nossas condições morais, existências, medos, nos coloca em situações extremamente desafiadoras. A margem não necessariamente é fator de limitação de nossos desejos, até em muitos casos, pode ser um fator de excitação e de enriquecimento de nossa condição existencial. Talvez, seja por isto que a grande maioria da bichas que viveram as décadas passadas, tavez de forma inconsciente tenham tanta certeza em suas afirmações de que naquele contexto era melhor viver a sua sexualidade.
Relatam que na época os rapazes, entre eles, muitos que serviam o quartel na Andradas, vinham até a Praça da Alfândega que na época era referencia social na cidade e ali em bares já mapeados se encontravam com as bichas, bebiam, jogavam conversa fora e depois saiam para encontros em locais mais íntimos. Contam as bichas mais tiranas que os bofes tinham namoradas, mas que não podiam transar com elas devido às regras morais da época. Isto fazia com que eles estivessem mais a disposição para encontros sexuais. Também relatam que davam algum presente pros bofes. É claro que estes presentes não significava somente um agrado, mas no imaginário deles, reafirmavam as diferenças dos papéis sexuais envolvidos nestas relações, sem comprometimento de sua masculinidade.
Neste universo, podemos pensar que a metade de nosso prazer, fetiche está em nossa capacidade de imaginação e o resto está no corpo do bofe…
Com as transformações que vieram já na década de 90 com o surgimento de um movimento organizado, visibilidade, conquista de direitos destes sujeitos emerge também uma nova lógica de espaço urbano, onde o mercado vai se adequando as novas exigências e nichos.
O cenário e a forma de viver a homossexualidade tiveram um impacto muito grande nesse período de transição, e na própria arquitetura da cidade. Os guetos vão perdendo seu espaço, como locais de encontro e referência política para estes sujeitos, um espaço de construção identitária que hoje já está comprometido no novo cenário que está posto. Sem falar nas conquistas de espaços com visibilidade pública das paradas, pela mídia que já reconhece a legitimidade destes sujeitos e, é claro atrelá-los ao consumo e ao mercado “sem sexo, sem promiscuidade”, higienizado. Construiu-se no imaginário da sociedade e dos próprios Gays o rompimento da figura do homossexual marginal, perigoso de antes e emergiu a figura do Gay urbano e de bom gosto.
A cidade já não é mais recortada pelos guetos, onde os frequentadores entravam rapidamente para não serem percebidos. Hoje esta convivência ocupa outros lugares nos quais o público é mais miscigenado e plural, nos quais estes novos personagens que já não tem a referencia de décadas passadas. A lógica que ocupa tais espaços é a construção de um lugar para gay classe média, moderno, assimilado e padronizado dentro de uma nova urbanidade. Já não convivemos com as bichas loucas que antes faziam parte do cenário marginal, que não se adaptavam a esta lógica assimilada por padrões heterossexuais. Estas bichas loucas estavam sempre preparadas para dar respostas a qualquer situação de exclusão. Aprenderam com sua própria experiência a se posicionar e reagir a ataques que podiam vir de qualquer local e momento. Já não existe mais espaço para asloucas, bafonas. É bom registrar que as travestis ainda estão nesta margem, apesar dos avanços conquistados.
A internet colocou outros personagens, além dos gays higienizados neste universo e deixou as relações ainda mais facilitadas através de encontros furtivos e até arranjos maritais. Hoje já não temos mais “improvisações sexuais”, tudo já está muito claro e mapeado. O prazer é combinado por clique em celulares via aplicativos específicos e via satélite. As imagens e o bate papo dão a tônica da pegação, que se seguirá ou não.
Mas outro ponto fundamental neste debate nos remete a pensar as formas de afeto que as bichas procuram entre a lógica do prazer fortuito e o prazer legitimado, romantizado e possibilitado por esta nova conjuntura política. Tendo a pensar que esta adaptação conjugalidade nos moldes institucionais responde em parte a necessidade de legitimidade social e sexual. Pelo que vejo é uma procura que não encontra respostas, e que as negociações acabam criando relações funcionais para não dizer artificiais. Tudo para dar resposta a uma condição existencial pré-estabelecida, e que tem como norma e referência a heterossexualidade, que também não consegue responder as exigências sexuais e sociais.
Neste contexto é que surgiu o termo homoafetivo. Enquanto as bichas desajustadas estão à procura de prazer fortuito na margem, nos bancos de praças, parques, esquinas e ruas, as outras estão atormentadas por uma relação que lhes garanta prazer, segurança, estabilidade emocional e principalmente legitimação social. Em qualquer uma das situações postas, o preço a se pagar é sempre relativo ás exigências pessoais e sociais de cada sujeito, afinal somos produto da cultura, como bem dito pela sociologia e antropologia.
Por outro lado, sabendo que somos e seremos por muito tempo sujeitos desviantes, mesmo os assimilados, acredito que o prazer na margem possibilita a construção de um sujeito mais dono de si, autônomo e independente, na medida em que percebe o universo social e político da exclusão e dentro desta realidade consegue negociar, superar e enfrentar os dilemas existências, tendo em sua vivência sexual e social um prazer mais “real” e autentico, inclusive com a possibilidade de superar a síndrome da vitimização. O sujeito marginal tende a ter uma relação mais transparente e desafiadora consigo mesmo e com a sociedade.
Pois bem, neste processo de “conquistas” as amigas saudosistas, irenes, que já passaram dos 60, insistem em afirmar que hoje não existe mais glamour, reclamam que já não tem festas e bailes onde elas possam ir montadas, sentar numa mesa com toalha de tafetá, pedir um bom otim, (bebida de álcool) se sentir poderosas, e de preferência acompanhadas com um belo bofe fazendo a linha falso romântico. Ainda reclamam que as gays de hoje não sabem o que é bom, nem sabem se comportar em ambientes finos. Bom, o que resta, então, é ver como as novas gerações vão se posicionar frente a este novo mundo.
¹ – Quando uso a palavra margem, me refiro à situação de exclusão que pessoas vivem na sociedade a partir de sua condição de gênero, classe social, cor. A ideia de margem neste sentido está ligada à possibilidade destes sujeitos olharem para a cidade a partir do local social a qual vivem. Neste contexto há uma possibilidade de arranjos sociais de sobrevivência. Isto pode, para muitos, ser um fator de ganho existencial.
Por Célio Golin
Fonte: Sul21
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