A busca pela masculinidade absoluta faz com que muitos gays se privem das tantas possibilidades que a homossexualidade oferece.
A orientação sexual mais frágil que existe é a do homem heterossexual.
Esse não é um conceito originalmente meu; quem apontou isso foi o colunista norte-americano Dan Savage. Ele chama a atenção para o fato de que, em nossa cultura, um homem ser hétero significa duas coisas: que você não é mulher e que não é viado. E portanto o homem hétero vive sob constante patrulha, pois qualquer escorregão numa dessas direções pode marcá-lo como gay enrustido. Pense bem: um gay pode beijar uma mulher, pode transar com uma mulher, pode fazer um filho numa mulher, e ninguém vai suspeitar que por trás daquela bicha existe um hétero reprimido. As garotas beijam-se umas às outras nas festas, experimentam transar com mulheres e, se depois resolvem que gostam mesmo é de homem, podem se apresentar como heterossexuais pelo resto da vida sem que pairem negras nuvens de dúvida sobre suas preferências. Elas podem até contar para os maridos o que fizeram, e esses maridos provavelmente vão ficar com tesão.
Já o homem heterossexual vive em estado de sítio. É vaidoso demais? Hmmmm, viadinho. Chora vendo novela? Bichona. Gosta que a namorada passe o dedo no seu cu? Bicha louca. Não importa que ele só curta dedos femininos em sua bunda, é bom não espalhar porque muita gente vai pensar que “aí tem”. E a marcação cerrada não vem apenas dos amigos héteros, mas também das mulheres, namoradas, família, e até gays. Esposas são capazes de colocar em dúvida a “macheza” do marido após décadas de casadas se, um dia, ele contar que quando jovem foi pra cama com outro cara uma vez.
Nesse sentido, ser gay é muito libertador.
O que só me deixa ainda mais perplexo quando eu me deparo com os gays que se anunciam orgulhosamente como machos pra caralho.
Todo mundo conhece um: os caras que estufam o peito e dizem que são gays, mas só curtem “outros machos como eles”. Consideram-se muito superiores aos “outros gays” que não mantêm a virilidade tão intacta depois de descobrirem que gostam de outros do mesmo sexo. Gostam de dizer que vivem “fora do meio”. E quando podem afirmar que não têm amigos viados, apenas amigos heterossexuais, exibem com alegria essa prova de que ainda não foram corrompidos. Consideram-se praticamente heterossexuais, não fosse o fato de gostarem de homem.
Eu acho lamentável. Os héteros pelo menos vêm com todas as vantagens inatas a sua heterossexualidade: vida social (quase totalmente) aberta, demonstrações de afeto em público sem risco de escândalo, orgulho familiar, enfim. Aqueles que conseguem navegar bem sob essa vigília constante de sua sempre ameaçada masculinidade podem colher os louros dessa façanha. Já o gay machão, o que ganha com isso? Nada além da ilusão de que é de alguma maneira superior aos outros gays.
Vou admitir aqui que, quando eu comecei a minha já um tanto extensa carreira de viado, eu rezava por essa cartilha. No começo da faculdade, escondido lá no fundo do armário, não queria que me associassem de forma alguma à homossexualidade. Mantinha gravada na mente uma lista dos poucos escolhidos para quem eu confiara esse meu segredo. Trair essa confiança era uma ofensa imperdoável. Felizmente isso tudo começou a ruir quando tive meu primeiro namoro de verdade, com um cara que não fazia questão nenhuma de esconder o afeto que sentia por mim. E assim, em poucas semanas, a universidade inteira sabia quem eu namorava, porque eu era metade daquele casal gay que deitava junto no gramado da faculdade.
Mesmo depois disso eu resisti bravamente a outras pequenas liberdades que os gays se permitem. Usar qualquer pronome feminino relacionado à minha pessoa era expressamente proibido. Me chamar de “bicha”, então, simplesmente inaceitável. Não suportava bichas que falam mole, e mal conseguia disfarçar o orgulho quando alguém vinha me dizer que eu nem parecia gay.
A cura dos preconceitos é a convivência, e ainda bem que, ao longo dos anos, fui me permitindo penetrar – ou ser penetrado – pelo exuberante mundo gay. Ao conhecer mais e mais viados, descobri mundo em que as bichas se chamam carinhosamente de biscate; que tem a criatividade para criar expressões geniais como “fazer a egípcia”, “dormir de Chanel” e “vir de vinagrete”; que se apropria de palavras africanas e indígenas para construir sua própria língua; que assim como é capaz de destilar veneno, é capaz de atos surpreendentes de solidariedade pelo simples fato de você também ser viado. Uma cultura imensamente rica que deixa você escolher quais pedaços encaixam-se melhor na sua personalidade.
O viado machão, no entanto, abre mão de tudo isso para se distanciar de uma feminilidade que considera inferior. E, pior que o hétero, que é jogado dentro do cerco a sua sexualidade pela sociedade, quem coloca o gay-hétero sob vigilância é o próprio. Esse pavor a tudo que leve à bichice ou à feminilidade cria situações absurdas e sem solução. Já conheci um gay, até que bastante bem resolvido, que era predominantemente ativo. Ele se apaixonou por outro bofe muito homem e no sigilo, e foi correspondido. Verdadeiro lance entre dois machos. O problema é que o outro era apenas – e totalmente – ativo. O meu amigo, apesar de já ter dado algumas vezes, não queria se tornar “a passiva” da relação. Então os dois passaram meses apenas no troca-troca, engessados demais em suas preconcepções de virilidade, incapazes de fazerem concessões mútuas para satisfazerem um ao outro.
Não estou dizendo que todos os gays deveriam ser bichinhas poc-poc para se tornarem homossexuais verdadeiros e completos. Como todos os seres humanos, os gays não devem abrir mão do filtro social; há ocasiões em que um comportamento discreto e um vocabulário normativo são mais adequados, e há ocasiões em que o adequado é comentar com os olhos arregalados a neca do boy que está passando prazamigues. Mais uma vez: cada gay pode escolher quanta exuberância e o que dela serve para si.
Amarrar-se a uma masculinidade completa é a verdadeira demonstração de uma visão limitada do que é ser gay. O homem que se coloca nessa jaula se priva de samplear a enorme gama da sexualidade humana, e se engana quando se sente privilegiado ao se limitar à caixinha de uma identidade que sabe não ser a sua. Não adotar alguns (ou muitos) comportamentos pintosos porque não se identifica com eles é normal e razoável. Quando um homossexual repudia absolutamente tudo do “mundo gay”, no entanto? Isso é sintoma de um medo de rebaixar-se ao se afastar do olimpo tão cobiçado da heteronormatividade. E pior, ceder a esse medo não traz vantagem nenhuma. Ninguém além do próprio vai considerá-lo um gay melhor por isso – nem os héteros, muito menos os “outros” gays. Melhor é escapar dessa tocaia e se permitir experimentar outras atitudes. A vida vai ser mais relaxada – e quem sabe até mais feliz.
Fonte: LadoBi
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